Fresta:
1. Qualquer
abertura estreita que permita a passagem de luz e ar; fenda, fisga, frincha.
“Eu estou aqui!” desejava gritar além
dos olhos e mente o ser que observava como se estivesse em um retrato macabro
pela fresta da parede deixada por capricho na casa daquela família tão
perturbada. Quanto tempo mais iria vê-los sem confundi-los com seus próprios
familiares que há essas horas deveriam estar dando falta de si, afinal, saíra
para a conhecida cafeteria, pegar o cappuccino de sempre que acompanhava suas
tardes... Perguntou-se também naquele mesmo instante em que via o filho dos
donos da casa folhear as páginas em branco de um caderno, escrevendo do típico
jeito torto de quem quer fugir uma despedida amarga e puro alívio, de quem
chora a distância passada, imposta pela ignorância, tornar-se mais densa e
longa agora que teria que abandonar tudo, onde estaria seu café e biscoitos? O
vazio tomou conta e lembrou-se que nem a fome lhe fazia companhia. Após sentir a escuridão abraçar-lhe depois da
violência sofrida tudo se tornou um borrão e quando acordara vira-se dentro de
um plástico que tomava conta de todo o seu corpo, como um embrulho para a
viagem e a boca selada, os olhos fixos de pânico vendo o mundo fechar-se a sua
volta.
Ele olhou para os lados, afinal
sentia-se observado toda a vez que ia a peça, e secando as lagrimas que
prometeu não mais derramar, ajeitou a mochila no braço e confiante saiu com o
pé direito. Deixando para trás aquele passado e o perfume dos cabelos escuros e
compridos invadirem a casa até a fresta onde a fragrância dissipou-se
sobreposta à outra nada agradável.
O ser agradecia por cada vez que
abriam mesmo que minimamente a porta de entrada, pois só assim poderia ver algo
mais além daquela escuridão.
Depois um tempo passado e não
computado, mais um integrante daquela família entrou pela porta, o mais novo
dos filhos do casal com os mesmo cabelos compridos e pele doente do irmão. O
garoto no auge da inocência dos seus sete anos grudou de imediato os olhos na
figura do pai que os encarava com severidade e raiva tendo em mãos o papel
rabiscado com letras que mesmo que a criança soubesse ler não consegui ver
dali, pois gritos se sobrepuseram a sua curiosidade atípica.
“Porque ele foi embora Lu-” foi tudo o
que pode ouvir até fechar a porta do quarto em um estrondo. Correu os olhos nas
marcas do chão e mesmo sem ter lido as possíveis palavras rudes que o irmão
deixou, no seu íntimo entendeu que estava mais do que na hora de se livrar
daquilo, e olhando para o céu já estrelado indagou aos astros se não teria uma
forma de tirá-lo de lá também.
“POR QUE LUDMILA?” o homem magro de olhos
tristes e castanhos claros retornava a perguntar enquanto quebrava mais um jogo
de copos que se intrometia em sua frente.
O ser ouvia com nitidez mais uma briga
que ocorria na casa. Sentia seus ouvidos tremerem com os decibéis que a voz
alta soava, passos de alguém que anda sem sair do lugar, em círculos também
acompanhavam com o som molhado do sangue que escorria dos pés descalços sobre o
tapete enfeitado com cacos de vidro. A mulher do outro lado da sala se retorcia
incerta em parar com aquilo, mas a pancada dessa vez fora muito forte e todos
ali se faziam perguntas, como se por brincadeira tivessem perdido algo ao mesmo
tempo.
Kim ignorou a dor, só ela o acalmava e
subiu as escadas, suas questões tinham que ser respondidas e nem que a dor a
fizesse. Não tinha o porquê, sempre quis
proteger a todos que amava, mas todos iam e nunca voltavam. Por isso queria
poder pregá-los no chão para nunca mais saírem.
Podia-se ouvir da fresta os corações
batendo, como um martelo.
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