terça-feira, 4 de outubro de 2011

Mergulho


O vento acariciava rudemente os poucos fios do cabelo dela que serpenteavam fora da trança puxada, como ditava as regras do colégio onde estudava.
Naqueles intervalos entre as cansativas aulas e as pessoas ainda menos suportáveis com quem era obrigada a passar a maior parte do tempo, era-lhe solitário e silencioso, uma extensão de sua casa, suponho.
Entrara ali por uma vontade alheia de quem a criava, um fetiche macabro de seus pais; mais uma cena do teatro que inesgotados mostravam á tosca plateia da cidade.

Retornou à sala, cumpriu com o ritual e tentou se concentrar naquelas palavras que tentavam lhe dizer algo, mas não entendia, não afastava aqueles pensamentos que agora, pareciam tão apaziguadores...

Esses intrusos apareceram logo depois de mais uma das discussões que os pais, exigindo perfeição de sua boneca, tiveram com ela. Isso volta e meia acontecia, mas nunca chegara a esse extremo.
"Mas por que se culpar? A vida é uma só e precisamos arriscar nem que seja uma vez" quando leu tal frase na revista de uma das colegas que liam escondidas , decidiu parar de se assustar com a realidade que a cercava; faria algo por vontade própria, nem que fosse pela última vez.
Naquela sexta-feira vestira farda com ajuda da orgulhosa mãe, que sempre indagava o motivo de sua permanente inexpressão.
Hoje a senhora irá ver-me diferente mãe respondeu já animando a senhora que no final da manhã iria lá ao colégio ver mais uma de suas formaturas semanais.
Já tinha arquitetado tudo, quando na extraclasse ajudou um soldado a pegar a bola de vôlei no telhado do segundo pavilhão, agora era só mergulhar.
Pedira para a professora para ir ao banheiro "Necessidades de mulher" murmurou baixinho saindo com uma bolinha. Colocou os pés no corredor e tirou de lá uma câmera, e começou a gravar sorridentemente. Entrou no banheiro, gravou-se no espelho, e até sorriu. Saiu de novo e voltou ao segundo pavilhão, mas cortou caminho e abriu o portão que dava para o vasto pátio.
Respirou fundo, tirou a almofadinha do bolso da grossa jaqueta, colocou envolta da câmera e atirou no telhado, não a deixaria lá sozinha, então subiu o pé pequeno na bancada da janela, estabilizou-se e escalou nas bordas das janelas até o telhado.
Sorriu satisfeita, retomou a câmera e admirada gravou tudo lá de cima, a paisagem de tirar o fôlego, perfeita. Fitou o relógio, dali a um minuto daria o sinal do intervalo e todos estariam lá embaixo, e ela também.
"Olá" sorriu para a câmera em punho "Só queria dizer adeus... A esse cansaço e pressão. Acho que agora vou poder descansar" suspirou mirando o aparelho para a vista lá de baixo.
O sinal soou seus pés já estavam firmes para o impulso, então só correu e...



Os alunos saíam aliviados para tomar um ar fresco, indo reforçar o estômago para os 45 minutos em pé que os esperava no final da manhã daquele dia manhoso do sol que ora se escondia e se revelava.
E BUM! O som seco de um corpo sem reservas de encontro ao chão se fez presente, paralisando a todos, a fome indo embora dando lugar ao espanto, ao horror, à incredulidade.
Soldados, superiores e os professores próximos foram tentar acudir, mas o corpo jazia todo quebrado, envolto por sangue, estranhamente dobrado, com ossos fora do lugar, mas a mão direita segurava firme a câmera ainda gravando.
Chamaram a mãe da aluna Cecília e ela viu realmente outra expressão no rosto da menina, um alívio no rosto que estava levemente grudado ao cimento.




 

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